Lavits_Covid19_#9: o paradigma tecno-político criado pela pandemia: o risco e a oportunidade

María Paz Canales*

 

Há muito se diz que o medo é um mal conselheiro. No contexto atual, o medo da fome e da morte é mais real e tangível do que nunca. Especialmente em um continente marcado pela ausência de redes de proteção social que garantam àqueles que não podem trabalhar apoio para alimentar suas famílias. A combinação de uma pandemia – ocasionada por um vírus rápido no contágio e desconhecido em suas modalidades de ataque – com economias precárias e cujos sistemas de saúde contam com escassos investimentos são os ingredientes para o completo caos.

Nesse contexto, a tecnologia tem sido convocada para cumprir uma série de papeis na mitigação ou controle da pandemia. Eles podem ser caracterizados de maneira ascendente de acordo com seu nível de intrusão no exercício de direitos: informação sobre saúde; auto-diagnóstico; dados integrados para a tomada de decisões de saúde pública; rastreamento de contatos; passaportes de mobilidade e trabalho e vigilância do confinamento.1

Cada uma das esferas identificadas conta com uma série de possibilidades tecnológicas de implementação que, por sua vez, esteve sujeita a diferentes níveis de escrutínio por parte de especialistas das diferentes disciplinas. Também despertaram uma diversidade de reações na cidadania que as vê proliferar em seus contextos locais e geram diferentes tipos de impacto no exercício de direitos humanos que merecem ser avaliados.

Não foram poucos os que insistiram em alertar sobre as mudanças fundamentais que o papel dado às tecnologias durante a pandemia estão gerando na narrativa sobre o exercício das liberdades públicas.2 O discurso que envolve a implementação das tecnologias no contexto da pandemia é tão rico em metáforas que apaga os áridos limites que anos de trabalho em padrões internacionais de direitos humanos tentaram instalar como bandeira.

Não soa tão convincente falar em legalidade, necessidade e proporcionalidade, ou em ponderação de direitos, quando do outro lado se fala em vencer todos juntos ao inimigo invisível, de cuidar-nos juntos. A vigilância que acompanha a instalação da tecnologia é benévola, afinal: qual o problema em usar a tecnologia com a qual o capitalismo de vigilância já nos acostumou para o louvável fim de proteger a vida?

Todos somos necessários na luta. A informação coletada para outros usos por agências públicas ou privadas pode ser redirecionada para ser usada na pandemia. As desconfianças passadas nas capacidades e a probidade das autoridades devem ser suspendidas. A confidencialidade das informações de saúde pode ser flexibilizada. Às empresas que antes ofereciam tecnologia para espiar e perseguir jornalistas e defensoras de direitos humanos ou para exercer controle discriminatório de imigrantes ou minorias étnicas deve ser oferecido o benefício da dúvida de que, agora sim, usarão suas capacidades para o bem público.

Uma narrativa de trocas e compensações (trade-off) se instala para nos conduzir à normalização da vigilância sem orientação política, porque todos somos necessários na luta quando estamos sob uma lógica de guerra contra o inimigo invisível e poderoso. No entanto, essa política de vigilância a serviço do bem comum tem sim uma vítima, que não é precisamente o vírus. As capacidades limitadas das tecnologias em contribuir com o combate à pandemia fazem com que seja mais provável que elas prejudiquem mais, e de forma mais grave, as liberdades públicas do que o SARS-CoV-2.

Particularmente preocupante é que as tecnologias de vigilância se instalem sob estatutos de emergência que – outra vez apelando a lógicas de guerra que excepcionalmente permitem flexibilizar os balanços e controles daqueles no poder público, as liberam da necessidade mínima de prestação de contas, transparência e supervisão que seriam exigidas em qualquer outra contexto. Essa estratégia não é nova e, como toda boa moda, depois de anos de uso intenso na luta contra o terrorismo pós 9/11, retorna revigorada por um inimigo invisível ainda mais fácil de temer e odiar dada sua ausência de humanidade.

A tecnologia de vigilância permite decidir quem está autorizado a participar da vida pública, quem pode trabalhar, quem deve ficar em casa, quem recebe e quem não recebe a ajuda econômica que lhe permitirá sobreviver. Nada disso soa a uma sociedade regida por princípios democráticos ou pelo respeito e promoção dos direitos humanos, senão a um eco das melhoras novelas de ficção que previam um futuro de autoritarismo e controle em nome do bem público.

Fica fácil identificar o risco de que essas narrativas assépticas do papel das tecnologias capturem progressistas e neoliberais sob a promessa de tornar realidade um mundo em que a autoridade da vez nos lidera com o auxílio tecnológico até o futuro que nos foi escolhido para o nosso próprio bem. Qual é a oportunidade, então? A que nasce desse risco. Temos diante de nós a oportunidade de não nos deixar seduzir pela heresia do tecno-otimismo e exigir mais dos contextos que acompanham a implementação das tecnologias. Ninguém defende que elas sejam banidas, mas sim colocadas no modesto lugar que lhes corresponde, em um contexto político e normativo que permita impor limites a seus usos e abusos.

A pandemia reforçou a ubiquidade das tecnologias em nossas vidas e essa é a melhor oportunidade que temos para entender a necessidade urgente de reivindicar de volta o controle individual e coletivo daquela que é instalada nos âmbitos público e privado em nosso nome.

Precisamos nos responsabilizar por propor bases sólidas para que o uso das tecnologias no contexto da pandemia permita alcançar seu potencial máximo, por mais limitado que seja, mas com respeito aos direitos das pessoas cuja proteção deve estar no central da estratégia de mitigação da pandemia.

Para isso é necessário – seja por meio de uma legislação ordinária ou de emergência – obrigar que as soluções tecnológicas a serem implementadas no contexto da pandemia que façam uso de dados pessoais satisfaçam os seguintes componentes:

1. Caracterizar de forma estrita a situação de emergência e/ou o prazo que autoriza o acesso a dados pessoais e sensíveis de saúde nas mãos dos distintos órgãos do Estado;

2. Especificar quem está a cargo do acesso extraordinário a esses dados;

3. Detalhar quais são e como se utilizarão os dados aos quais se solicita acesso extraordinário e, se são coletados diretamente das titulares, que isso ocorra de forma voluntária;

4. Estabelecer provisões de término do acesso e uso extraordinário dos dados com medidas efetivas de controle de acesso ou eliminação, caso necessário;

5. Estabelecer medidas específicas de segurança operacional para evitar o acesso e uso malicioso de dados e determinar que o uso de dados pessoais esteja sujeito a técnicas de pseudonimização ou dissociação (com algoritmos de anonimização suficientemente robustos) quando se trate de disponibilizar informações ao público, além de ter a segurança como requisito indispensável que inclua o uso de criptografia para proteger informações em trânsito e mecanismos de armazenamento seguro e resiliente;

6. Garantir a representatividade dos dados com os quais se nutre a tecnologia e a tomada de decisões de políticas públicas que ela alimenta, tendo em consideração os contextos locais permeados pela marginalização de grupos vulneráveis;

7. Estabelecer mecanismos de prestação de avaliação das tecnologias implementadas em sua efetividade e precisão técnica, mas também em seu impacto ao exercício de direitos humanos e não só à privacidade, e

8. Estabelecer mecanismos de transparência, controle externo e prestação de contas que permitam fiscalizar e sancionar fortemente o desvio de finalidade no acesso e uso dos dados.

São esses controles e contrapesos que nos devolvem a nossos velhos e conhecidos padrões de legalidade, necessidade e proporcionalidade na limitação do exercício de direitos humanos, que seguem sendo uma obrigação positiva de promoção e proteção dos Estados no contexto da pandemia. Aqui a vacina não precisa ser inventada, se encontra disponível nos padrões internacionais de direitos humanos do Sistema Universal e do Sistema Inter-americano de Direitos Humanos.3 Não deixemos que a heresia tecno-otimista que floresce na pandemia nos confunda com seu perfume.

*María Paz Canales é advogada com mestrado em Direito e Tecnologia pela Universidade da Califórnia, Berkeley. Desde 2017 é Diretora Executiva da Derechos Digitales, organização sem fins lucrativos que há 15 anos atua na defesa e promoção dos direitos humanos em ambientes digitais na América Latina. Como membro da Derechos Digitales, participa do comitê de programação da reunião preparatória regional para o Fórum de Governança da Internet (IGF), o LAC IGF, e do Grupo Consultivo Multissetorial (MAG) do IGF. Anteriormente, atuou nos setores privado e acadêmico com foco em regulação das telecomunicações, competição, proteção de dados e propriedade intelectual.

Notas

1 Exclui arbitrariamente as categorias que se referem à melhora na capacidade de diagnóstico (desenvolvimento de testes rápidos, diagnóstico auxiliado por inteligência artificial), tratamentos paliativos (retrovirais, medicamentos paliativos, uso paliativo de plasma) e infraestrutura de saúde (ventiladores, máscaras, roupas de segurança), tecnologias específicas para os serviços de saúde.2 Evgeny Morozov, The tech ‘solutions’ for coronavirus take the surveillance state to the next level. The Guardian, 15 de abril 2020, disponível em <https://www.theguardian.com/commentisfree/2020/apr/15/tech-coronavirus-surveilance-state-digital-disrupt?CMP=share_btn_link>.

3 Comissão Inter-Americana de Direitos Humanos. Resolução 1/20. Pandemia e Direitos Humanos nas Américas, 10 de abril 2020, disponível em <https://www.oas.org/es/cidh/decisiones/pdf/Resolucion-1-20-es.pdf>.

 

Série Lavits_Covid19

 

A Lavits_Covid19: Pandemia, tecnologia e capitalismo de vigilância é um exercício de reflexão sobre as respostas tecnológicas, sociais e políticas que vêm sendo dadas à pandemia do novo coronavírus, com especial atenção aos processos de controle e vigilância. Tais respostas levantam problemas que se furtam a saídas simples. A série nos convoca a reinventar ideias, corpos e conexões em tempos de pandemia.