A vigilância naturalizada

A assessora sênior na comissão de inquérito (CPI) sobre vigilância em massa, Anne Roth, apura para o Parlamento alemão como as agências de inteligência da Alemanha e a NSA cooperaram em seus programas de vigilância.Assessora da CPI sobre vigilância em massa do Parlamento Alemão critica aceitação dos processos de violação de privacidade

do Observatório da Privacidade e Vigilância*

Os Estados Unidos tem enfrentado nos últimos anos uma série de acusações de espionagem internacional, após o vazamento de documentos feito pelo ex-consultor da NSA (agência de segurança nacional) Edward Snowden, atualmente asilado na Rússia. Entre esses vazamentos, em outubro de 2013, descobriu-se que a chanceler alemã, Angela Merkel, foi vítima de violações à privacidade cometidas pelo governo estadunidense. Além disso, veio a público outras informações acerca de estreitas relações entre a NSA e o serviço de inteligência externa alemão, o BND (Bundesnachrichtendienst).

Diante desse cenário, a assessora sênior na comissão de inquérito (CPI) sobre vigilância em massa, Anne Roth, apura para o Parlamento alemão como as agências de inteligência da Alemanha e a NSA cooperaram em seus programas de vigilância. Segundo afirma, a maioria conservadora do parlamento evita se aprofundar nas questões de vigilância pois estaria alinhada com os Estados Unidos. Há grandes obstáculos políticos para que a comissão de inquérito da qual faz parte ouça Edward Snowden e membros do governo estadunidense. A CPI iniciou em março de 2014 e será concluída até as próximas eleições no país, em 2017.

Para além da espionagem estatal, Roth acredita em uma escalada de projetos em escanear o comportamento dos cidadãos. “A pergunta é: Por que as pessoas não se importam? Vejo semelhança à questão nuclear e seu perigo ao meio ambiente. A questão da vigilância é semelhante”, salienta.

Em dezembro de 2015 a alemã foi comunicada pelo Twitter que sua conta estava sendo alvo de ataques por agentes governamentais. O governo alemão tem lhe acusado de vazar documentos.

OPV – Em julho de 2013, as notícias sobre a relação entre a NSA e o serviço de inteligência externa alemão, o BND (Bundesnachrichtendienst), foram constantes nos jornais germânicos. Isso influenciou as eleições naquele momento?

A Alemanha teve eleições federais em setembro de 2013, dois meses após a revelação de [Edward] Snowden. Todo mundo pensava que isso seria um grande tema para a eleição. Quando ocorreram as eleições, o governo mudou, mas não completamente. Manteve-se conservador, mas comandado pelo Partido Social Democrata (PSD) da Alemanha. Entretanto, todos os partidos no parlamento concordaram que era necessário algum tipo de investigação.

OPV – Qual o impacto do vazamento do wikileaks no governo alemão?

Quando a primeira publicação veio à tona, o público alemão teve um choque como muitos países ao redor do mundo. Começaram a questionar ministros e estes começaram a questionar o serviço de inteligência externa alemão se essas informações vazadas eram verdadeiras. Dois meses depois o governo “decidiu” que não queria escândalo e disse “É muito tarde, está tudo bem agora”. Depois de Snowden nada mudou. As pessoas ainda usam o Gmail. Ninguém está protestando mais e toda a história acabou. As pessoas não se preocupam mais com vigilância. Está muito claro que a vigilância em massa feita pelos serviços de inteligência internacionais é muito grande e, no caso da Alemanha, a inteligência precisa cooperar por causa do terrorismo internacional.

OPV – Estamos enfrentando um momento muito complicado. Vários projetos de leis que atacam a privacidade. Houve aqui uma CPI denominada CPI Ciber. Como são as circunstâncias na Europa em relação a isso? É possível comparar esses dois contextos?

Posso falar sobre a Alemanha e um pouco sobre a Europa. E eu acho que é igualmente complicado. Na Alemanha, especificamente, nós temos uma Constituição forte que protege os direitos civis, protege dados pessoais e a privacidade da comunicação, mas também temos um governo que caminha nessa prática internacional de mais vigilância e mais vigilância. Na Alemanha, o setor de defesa cibernética contratará 20 mil programadores para defender o país no ciberespaço. Para mim, isso parece totalmente inapropriado. É uma grande armadilha. Se tínhamos terroristas então precisávamos de mais vigilância. Agora, temos ciberataques, então precisamos de mais vigilância na web. Apenas desculpas dos generais para que a opinião pública não compreenda que grande perigo realmente significa.

OPV – Google, Facebook e outras empresas do Vale do Silício também teriam se envolvido de forma sistemática em alguns aspectos da espionagem realizada pela NSA. É crível que tais companhias protejam os direitos civis perante o Estado, como elas próprias afirmam?

As empresas não tem opção porque elas tem que obedecer o governo quando ele diz que existe uma guerra. Talvez isso seja debatível, mas não quando o governo tem acesso irrestrito às informações pessoais por meio dessas empresas.

OPV – Qual a sua perspectiva sobre a vigilância em um futuro próximo?

Estou muito pessimista porque a vigilância digital está muito perversa, coletando todos os dados sobre todo mundo e usando isso para aprender o que você faz, como nós somos. O que me deixa bastante infeliz sobre isso é que a maioria das pessoas acha isso razoável. E é importante compreender sobre programas que conectam todos os tipos de informação para calcular como fazer o Big Data; o que é o comportamento tido como normal e qual o comportamento considerado desviante. A intenção é prender você preventivamente. Essa é a sociedade que me assusta e eu sou pessimista sobre essa possibilidade de sermos julgados por uma única visão, como no livro 1984, de George Orwell. Mas também tenho um pouco de esperança. Nos anos 1980 parecia que nós não tínhamos chance em relação à energia nuclear. Por um longo tempo, fortes movimentos sociais lutaram por muitas décadas para mostrar ao governo alemão um caminho para o fim da energia nuclear. Agora, eu acho que devemos lutar contra a vigilância assim como lutamos contra a energia nuclear, porque nós temos responsabilidade também pelas nossas crianças. Precisamos lutar para parar isso e realmente inventar sobre a novo tempo tecnológico.

 

* Texto publicado originalmente por Pablo Ortellado no Observatório da Privacidade e Vigilância, no dia 12/07/2016.